Evidentemente, está-se a ver, tinha de ser, Nicolau de Lacrau Ruminhau descendia de uma extensa linhagem de Lacraus e Ruminhaus, todos cheios de louvores, títulos e regalias obtidos por enormes favores feitos ao Rei e, mais tarde, ao Estado. Nicolau de Lacrau Ruminhau tinha então um longo manto de medalhas que, modestamente, resumia a Nicolau de Lacrau Ruminhau. Sim, ele era de nome completo Sua Excelência Reverendíssima Altíssima e Sereníssima Dom Nicolau Maria de Lacrau Oliveira e Sousa Ruminhau, Duque de Novarroque, Marquês de Angelísse e Conde de Xicarrite. Era também Barão de um sítio qualquer cujo o nome, na sua enorme velhice, não se lembrava.
Esse era o grande problema. Nicolau de Lacrau Ruminhau... estava velho. A idade tinha passado e Nicolau de Lacrau Ruminhau não se tinha dado conta. Nas inúmeras aventuras que tinha sido a sua vida tinha-se esquecido que, um dia, iria envelhecer. Agora que lá tinha chegado, não sabia muito bem o que fazer. Tinha imensas terras, palácios, amigos, familiares, criados e tudo o que se poderia desejar. Bastava um clique dos dedos e, imediatamente, o seu desejo se tornava numa duradoura e dourada realidade. No entanto, o que fazer...? Havia um enorme tédio que o invadia lentamente. Tinha pensado em escrever as suas memórias, mas isso apenas lhe deixaria saudades. Tinha pensado em viver novas aventuras, mas, na sua velhice, isso apenas o deixaria frustrado por já não poder saltar de árvore em árvore agarrado a uma liana... Havia coisas que a idade simplesmente não permitia.
Nicolau de Lacrau Ruminhau na mais alta torre do seu altíssimo palácio pensava... pensou... tornou a pensar ainda mais no que poderia fazer com a sua provecta idade e pensou novamente. Pensou ainda mais. A sua cabeça doía de tanto pensar durante dez longos anos. Pensou, pensava, remoeu os pensamentos. Tudo tinha, tudo podia e nenhuma ideia lhe aflorava no pensamento.
Nisto, olhando da mais alta torre do mais elevado palácio, reparou numa aldeia de onde se projectava uma enorme coluna de fumo. Chamou de imediato os seus mais letrados conselheiros. "Que fumo era aquele? Que fogueira estava por baixo daquele fumo?".
Partiram precipitadamente cavaleiros e cavalheiros procurando os caminhos certos para a aldeia de Cansite. Quando lá chegaram viram um enorme baile com centenas de pessoas cantando e dançando ao som de uma enorme sanfona. Reportaram a Nicolau de Lacrau Ruminhau. Este, de imediato, ordenou que os seus criados fizessem uma cópia desta festa no sopé da sua torre. Ele queria ver de perto aquilo que nem de luneta conseguia vislumbrar.
Nada feito. Por mais que tentassem imitar, os cavaleiros e cavalheiros nunca conseguiram afirmar que era igual à genuína festa da aldeia de Cansite. A sanfona era igualmente majestosa, os moços e moçoilas contratados estavam empenhados e sabiam a música e os passos da dança, mas não era a mesma coisa. Os cavaleiros e cavalheiros não estavam contentes. Replicaram a aldeia, casa por casa e até as achas da fogueira trouxeram ainda em brasa. Mas ainda não estava certo. Algo não funcionava...
Nicolau de Lacrau Ruminhau desesperava. Depois de tanto fazer na vida, quando só procurava um destino para a velhice, eis que tropeçava numa dificuldade... Tinha de ver a festa da aldeia de Cansite.
Do alto da mais alta torre do maior palácio do antigo Reino de Novarroque, de onde dirigia todos os detalhes do seu extenso negócio, chamou os mais sábios de todos os sabedores sapientes. "Como fazer?" Os mágicos, sábios, sabedores e outros filósofos sapientes pensaram e profetizaram. "Vossa Excelência Reverendíssima Entendidíssima e Compenatradissima terá de ir a Cansite. "Sair da minha torre, mais alta e majestosa? Descer? Ser novamente pequeno e visível?!" Era a única solução. Com tão peremptório discurso, após madura análise e apresentação de resultados, Nicolau de Lacrau Ruminhou preparou os seus vinte cavalos de puro sangue, o seu coche bordejado de ouro, safiras e diamantes e ordenou. "Vamos para Cansite!" Nisto, o mais sabedor dos sábios sapientes disse-lhe "Vossa Excelência Reverendíssima não irá ver a festa." "Não!?" afirmou o aristocrata dos aristocratas, "Isso é o que se vai ver! Ordenarei que festejem, à volta da mais quente fogueira e ao som da maior sanfona." E partiu.
Quando chegou a Cansite, depois dos vinte cavalos terem assustado toda a aldeia, encontrou um pátio deserto. Percebeu que a sua arrogância o tinha traído, como seria de esperar. Chamou o mais sábio dos sapientes e perguntou-lhe o que faltava. Estava disposto a dar-lhes tudo e eles tinham fugido...
Então o mais sábios dos sapientes explicou-lhe que, "quando quiserdes, Vossa Excelência Reverendíssima e Quadradíssima, realmente ver esta festa, tereis de trabalhar durante um ano de sol a sol, suar todos os dias para trazer para casa o pão suficiente para alimentar os de quem gostais e ainda deixar sobrar o necessário para pagar os impostos. Tereis de fazer isso todos os dias do ano sem nunca parar. Quando chegar ao final do ano, quando estiver bem frio, se sobreviveres, se toda a vossa família e amigos sobreviverem, aí sim, poderás trazer uma acha para a fogueira e bailar com o verdadeiro prazer de um agricultor de Cansite."
"Mas que injustiça essa de trabalhar de Sol a Sol, suar todos os dias... Estas terras são férteis, são boas e são minhas. Não é necessário nada disso. Novarroque é um Estado rico, porque trabalham como escravos esses habitantes de Cansite?" afirmou o mais rico dos ricos fidalgos de Novarroque. "Que eu saiba não houve qualquer tempestade, tremor de terra, vulcão, praga ou doença."
"O culpado, quereis mesmo saber?" questionou o sábio dos sábios, o mais sapiente de todos os sabedores.
"Ordeno-te que, se sabes, me digas já!" disse com a mais arrogante das arrogâncias o filho das mais abastadas linhagens.
"O culpado é o dono dos palácios com as mais altas torres, dos vinte cavalos de puro sangue e o proprietário dessas terras que se estendem até onde a vista alcança!" disse o sábio dos sábios com uma voz cheia de coragem, mas tremendo e temendo com o que se passaria a seguir. Mesmo assim, continuou "cada gota de suor que escorreu pelas suas faces alimentou os vossos cães durante um dia, cada gota de sangue, dos que se cortaram a podar quando já nem luz havia, serviu para fazer o vinho que ireis beber hoje ao jantar. Por cada grão de trigo que chegou à mesa daquela criança, houve uma eira que encheu os vossos cofres. Vós sois o culpado!"
Nicolau de Lacrau Ruminhau, herdeiro de tão nobres linhagens, educado pelos mais ilustres letrados de caracteres limados a fio de prata, sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. Não era possível. Ele o perfeito entre os iluminados não podia ser responsável por tamanha injustiça. Logo ali, deu ordem para desmontarem dezanove dos cavalos e darem um a cada família de Cansite. E, com o último, montou e procurou cada aldeia de Novarroque, passando dias a distribuir a riqueza que tinha inutilmente acumulado durante tantos anos. Deu um pouco de tudo a todos aqueles que tinham sido tão tristemente explorados.
Uma nova vida começou em Novarroque a partir desse dia. O mais sábio dos sábios coordenava os trabalhos nas terras de Nicolau de Lacrau Ruminhau e Nicolau de Lacrau Ruminhau ajudava a construir escolas, hospitais, hospícios e catedrais, iniciando assim um ciclo de felicidade em Novarroque.
O Presidente de Novarroque, ao saber de tão grande revolução nas terras de Nicolau de Lacrau Ruminhau, mandou chamar o mais digno dos finos e gentis aristocratas. Ao saber da história, que coroava uma vida de serviço ao Estado, resolveu nomear o velho Nicolau de Lacrau Ruminhau como Ministro de Bem Fazer para toda a Novarroque.
E assim terminaram com enorme azáfama os dias de Nicolau de Lacrau Ruminhau, inesperado Ministro de Bem Fazer, nomeado por um baile no pátio central de Cansite.
Foto: F Cardigos.
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