sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Natal da minha aldeia

É estranho, mas apenas agora que penso nisso reparo que nunca conheci o Natal da minha aldeia. Como não nasci, nem família tinha na minha aldeia, o Natal era sempre passado numa terra distante e estranha. Ensaiava as peças de Natal, os cânticos, os presépios vivos e, depois, pufff... ía para a cidade ter com a família que, parte dela, apenas conhecia de ouvir dizer. Tinha o seu lado bom, curiosamente. Quando voltava, ficava horas a ouvir as peripécias das minhas actuações onde não tinha estado, partilhava as novidades "da cidade" e brincava entre as prendas da minha aldeia e as que tinha trazido.
Durante anos foi assim e apenas pude sonhar com o Natal da minha aldeia. Portanto, esta história pode até nunca ter acontecido, ou se calhar aconteceu porque esteve certamente na mente de uma criança.

Era véspera de Natal, a luz começava a escassear e, como o gerador de electricidade apenas era ligado quando o trabalho assim o exigia, a penumbra invadiu todo o espaço. Passaram todos a ser vultos e sombras, apenas identificados quando se cruzavam com uma das velas ou com um dos poucos candeeiros a petróleo. Nesta negrura, os sons passam a valer mais e até, digo eu, a ter cor e sabor. Todos os murmúrios ficam claros e o som do silêncio é uma suave e gentil música.
E era música mesmo o que se seguia. Enrolaram-se nos cobertores de lã, afinaram as vozes e partiram para cada uma das casas que, vizinhas, esperavam os coros para os acolher, cantar em conjunto, orar pelos que partiram e dar graças pelas colheitas que se começariam a vislumbrar daí a alguns meses. Uma casa, outra e mais outra, todas foram visitadas. No final, recolheram à casa mãe onde todos se abrigavam na sala grande. Aí, num palco improvisado com umas tábuas sobre pipas vazias, os rapazes e as raparigas da escola iriam dentro de momentos começar a encenação do nascimento de Jesus.
Aquela peça era a mais monótona e previsível história. Numa aldeia profundamente católica todos sabiam exactamente mínimos detalhes bíblicos. Por isso, a mestre-escola tentava sempre polvilhar com frases alusivas aos factos da actualidade resultando isto numa absolutamente deslocada e anacrónica peça teatral, com péssimos actores, que se esqueciam sempre da punch line o que retirava toda e qualquer hipótese do mínimo sorriso. Aquela obrigatória cena era apenas suportável porque era representada pelas "nossas crianças". Quando, finalmente, o sacrifício chegava ao fim podia começar a festa a sério.
Havia um grupo de jovens que, aproveitando a recente revolução dos cravos, formaram um grupo de rock! As violas acústicas, os tambores e adufes transformavam-se em avançados e, senão eléctricos, pelo menos electrizantes instrumentos dos Beatles, Rolling Stones e Elvis Presley. Todos os ídolos passavam por cima daquele palco. Tanto os mais velhos como os mais novos repetiam os movimentos que no café da estrada nova viram na televisão. Era divertido. Eu, miúdo que lá não estava, dancei toda a noite.
Quando se cansaram, os mais velhos tomaram o palco. As músicas de resistência ocuparam o ar. Os hinos até há pouco proibidos eram cantados com enorme e profunda emoção. Apesar de ausente, vi na Ti Maria um olhar cerrado de quem não perdoa o filho que lhe levaram na guerra. O punho fechado em cima da mesa estava tenso. A vela e o copo de vinho iluminavam-lhe a cara do vermelho cólera que lhe varria o coração.
A noite foi andando, uns saiam cansados, outros porque o caminho ainda era longo. A pouco e pouco a sala foi ficando mais vazia. A cada um que saía era dado um longo "graças a Deus" ou "Feliz noite de Natal". No final, apenas uns quantos rapazes se foram aninhando perto da lareira e continuaram a contar as histórias de terror que desafiavam os mais corajosos a aguentar em directa.
Admito que, apesar de não estar lá, me agradava aquele calor, mas que fui caindo enrolado na manta de lã até adormecer sobre o braço. De manhã, acordei com a excitação que andava no ar. "Que prendas teremos?" Será que, finalmente, "irei ter a bicicleta?" Eram tempos duros. Uma bicicleta nunca seria uma bicicleta. Quanto muito, era um projecto, um plano, uma ideia que seria materializada depois de muitos pedidos, muitas moedas juntas e, certamente, com um desconto especial do Sr. Manuel Joaquim porque "és bom rapaz e depois me farás uns recados".
Estava fora de questão, uma bicicleta nunca seria prenda. Talvez um gorro novo ou, com muita sorte, uma bola para jogar futebol. Recolhemos apressadamente a nossas casas e, algum tempo depois, estávamos todos no cruzamento das estradas a mostrar as prendas. Quer dizer... "a" prenda. Havia um de nós que tinha um tio emigrado em França e que lhe tinha enviado uma caixa de peças que se montavam... Espectacular. Ficámos a rodeá-lo enquanto através das figuras coloridas das instruções, dávamos ordens de engenheiros que ele, com precisão, executava. Na primeira sequência montámos uma casa, depois uma figura que parecia um cão e, finalmente, uma mangedoura em que podíamos colocar umas pedrinhas. Depois deste enorme trabalho, fizemos as linhas e fomos jogar à bola. Ganharam os que não perderam, como sempre. O campo começava numa rua e no cruzamento fazia uma curva para poder continuar sem descer muito, o que aconteceria se continuasse na mesma estrada. As balizas eram umas pedras e a bola era... de catchú... O Paulo tinha ganho uma bola de verdadeiro catchú... Ainda hoje não sei o que isso é, mas naquele tempo, mesmo sem saber porquê, era determinante. Tinha uma câmara de ar e, por fora, era de pele cozida. Foi uma enorme animação.
No final da manhã, toda a aldeia se reuniu na Igreja onde o padre avisou para os perigos vermelhos e como os comunistas seriam impedidos de entrar no Reino de Deus. Na minha aldeia havia duas verdades. Aquela que estava dentro da igreja e a outra que, cá fora, grassava pelos campos e pelas vozes dos trabalhadores que metiam os grandes proprietários a andar, acabando com anos de exploração. Na verdade, a grande maioria dos latifundiários estavam desaparecidos e, portanto, nem havia problemas  de maior.
O Natal estava a chegar ao fim. Eu sabia que aquela criançada, no dia seguinte, iria partir com os pais para pastorear os animais, amanhar a terra, transportar água ou qualquer outra tarefa que se impusesse. Era um Natal de curta duração, mas intensamente vivido. O Natal da minha aldeia, aquele em que eu nunca estive.


Foto: F Cardigos.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Histórias de banheira I

Desde que começou a exigir, e hoje a as crianças começam a exigir cedo, que o David me pede para lhe contar esta história no banho. Todos os dias, estas palavras são ditas exactamente da mesma forma e na mesma sequência. Tenho a certeza que se estiver na Horta e lhe der banho, o David me irá pedir para lhe contar esta história.


E segue assim: Era uma vez...



... um urso e um porquinho que andavam a contar cogumelos e flores. Contaram, um, dois, três cogumelos e uma flor.


O tigre também andava a contar cogumelos e flores, mas apenas encontrava flores. Contou, uma, duas, três flores.


A certo momento, o urso ficou cansado e foi aconchegar-se no rato.


Mas o tigre continuava muito excitado e foi brincar com a sua bola.


Até que o burro lhe tirou a bola para a utilizar como almofada.


Nisto, já o urso e porquinho estavam mesmo a dormir.


Acabou.

Foto: F Cardigos.