Gaspar tinha uma enorme capacidade de falar em público. Era mesmo um sobre-dotado na arte da oratória, apesar de não ter tido uma grande escola, tirando a grande escola da vida, claro está. Quando se punha a dissertar, fosse um tema que conhecesse e dominasse ou não, atraía a embasbacada audiência para o ouvir a recitar um verso, a declamar prosa ou a discursar sobre as guerras do mundo. O fado falado parecia ter sido feito para ele, tal a sua capacidade de memorizar textos e articular as belas e redondas palavras de Camões. Por outras palavras, era um tagarela de primeira apanha...
À noite, antes de decidir qual o golpe que daria, passava na Taberna da Tia Judite Juliana e ficava horas a saborear e a dar a saborear os vocábulos de que se lembrava. Foi numa dessas noites que os olhos de Gaspar se cruzaram com os de Maria. Ela não deu a Gaspar mais atenção do que estava a dar à Tia Judite, enquanto servia um generoso e bem cheiroso copo de vinho, mas quando Gaspar terminou de dizer a primeira sílaba, já ela lhe tinha caído nos braços, mesmo sem se ter mexido.
Nessa noite não houve golpe. Dedicou-se por inteiro àquela que ele já sabia que viria a ser sua mulher. Nessa noite Maria percebeu que o seu coração tinha acabado de ser roubado para todo o sempre e ainda mais além. Gaspar muniu-se dos seus melhores poemas, ou melhor, dos melhores poemas que conhecia, visto que não considerava que os seus improvisos estivessem à altura de Maria.
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
e continuou e continuaram...
Não ocorreu a Gaspar perguntar a Maria, para si a mais bonita e delicada de todas as mulheres, o que estaria ali a fazer. Também não ocorreu a Maria questionar qual a actividade de Gaspar. Ambos ouviram o que foi dito e respeitaram o que não foi.
Se defeito tinha Gaspar era falar demais... Nos dias seguintes, contou-lhe tudo, incluindo, gabando-se, como ganhava a vida. Já Maria, percebeu o erro e a inevitabilidade do que se seguiria. Maria, senhora dos seus segredos, por mais que gostasse de Gaspar, não lhe podia contar tudo. Gaspar apenas sabia que Maria tinha de se ausentar periodicamente. No entanto, o fulgor, a energia, o carinho e a saudade que trazia de volta das saídas em trabalho eram demasiado reais para que restasse espaço para dúvidas ou ciúmes.
Depois de conhecer Maria, Gaspar considerou que tinha de dar um golpe maior porque queria que a sua rainha utilizasse aquele magnífico colar que tinha visto na Joalharia do Ouro Reluzente. Como não se sabia conter, contou a Maria os detalhes daquele golpe que, segundo ele, ficaria na história dos bairros tradicionais de Lisboa. Simularia uma avaria no sistema eléctrico e, quando fosse chamado o reparador, estaria ele do outro lado da linha. Depois, já com a desculpa para entrar na Joalharia do Ouro Reluzente e mexer no sistema eléctrico, colocaria um dispositivo que não apenas desligaria o alarme como abriria as portas à hora determinada da madrugada.
Não fosse estar a quebrar uma das suas regras básicas, estava de facto a roubar mais do que necessitava, e Gaspar sentir-se-ia realmente bem. O golpe era genial, resultava de um estudo profundo de electrónica e tinha um toque de classe muito acima da média. Ficaria nos Anais da criminologia alfacinha. Ou não...
Maria, por seu lado, insistiu para que ele não o fizesse. Ela não queria um colar e muito menos roubado. Disse-lhe vezes sem conta que não... mas Gaspar estava cego pelo génio daquele passo. Mesmo que Maria não o quisesse de facto, o que ele duvidava tal a beleza das pedras brilhantes que estavam ligadas pelo fio banhado a platina, poderia sempre vendê-lo ou trocar pela enorme viagem de Lua de Mel que ainda lhe estava a dever. Excelente, pensou, e fez.
Gaspar deu o golpe. No momento em que estava a entrar na Joalharia do Ouro Reluzente, apareceram dois polícias que, calmamente e com gentileza, o algemaram e levaram para a prisão. Apanhado em flagrante, apenas restou a Gaspar confessar como tudo fizera para que a pena não fosse tão pesada. Nada feito, o juiz, conhecendo a fama de Gaspar, deu-lhe uma pena exemplar.
Gaspar pensou-se perdido e, pior, pensou ter perdido Maria. Nada mais errado. Maria revelou-se uma ainda mais dedicada esposa. Todos os dias, ela o visitava na prisão, levando-lhe livros, comida e, acima de tudo, todo o amor que lhe tinha. Maria continuou durante toda a pena de Gaspar a visitá-lo. Gaspar, em troca, prometeu-lhe deixar o crime e aproveitou os tempos de cárcere para se formar em Literaturas Clássicas de Língua Portuguesa. No final, tal o brilhantismo da sua formatura, como não poderia deixar de ser, foi convidado para leccionar na mais prestigiada das Universidades.
Tudo isso, não sabia Gaspar, tinha de agradecer a Maria, mulher de Gaspar e a agente mais secreta e honesta dos serviços de espionagem da polícia camuflada.
Foto: F Cardigos.
Notas:
- "Fado falado" no YouTube.
- Versão completa do soneto "Amor é fogo que arde sem se ver" de Luís Vaz de Camões pode ser lido aqui.