sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Natal da minha aldeia

É estranho, mas apenas agora que penso nisso reparo que nunca conheci o Natal da minha aldeia. Como não nasci, nem família tinha na minha aldeia, o Natal era sempre passado numa terra distante e estranha. Ensaiava as peças de Natal, os cânticos, os presépios vivos e, depois, pufff... ía para a cidade ter com a família que, parte dela, apenas conhecia de ouvir dizer. Tinha o seu lado bom, curiosamente. Quando voltava, ficava horas a ouvir as peripécias das minhas actuações onde não tinha estado, partilhava as novidades "da cidade" e brincava entre as prendas da minha aldeia e as que tinha trazido.
Durante anos foi assim e apenas pude sonhar com o Natal da minha aldeia. Portanto, esta história pode até nunca ter acontecido, ou se calhar aconteceu porque esteve certamente na mente de uma criança.

Era véspera de Natal, a luz começava a escassear e, como o gerador de electricidade apenas era ligado quando o trabalho assim o exigia, a penumbra invadiu todo o espaço. Passaram todos a ser vultos e sombras, apenas identificados quando se cruzavam com uma das velas ou com um dos poucos candeeiros a petróleo. Nesta negrura, os sons passam a valer mais e até, digo eu, a ter cor e sabor. Todos os murmúrios ficam claros e o som do silêncio é uma suave e gentil música.
E era música mesmo o que se seguia. Enrolaram-se nos cobertores de lã, afinaram as vozes e partiram para cada uma das casas que, vizinhas, esperavam os coros para os acolher, cantar em conjunto, orar pelos que partiram e dar graças pelas colheitas que se começariam a vislumbrar daí a alguns meses. Uma casa, outra e mais outra, todas foram visitadas. No final, recolheram à casa mãe onde todos se abrigavam na sala grande. Aí, num palco improvisado com umas tábuas sobre pipas vazias, os rapazes e as raparigas da escola iriam dentro de momentos começar a encenação do nascimento de Jesus.
Aquela peça era a mais monótona e previsível história. Numa aldeia profundamente católica todos sabiam exactamente mínimos detalhes bíblicos. Por isso, a mestre-escola tentava sempre polvilhar com frases alusivas aos factos da actualidade resultando isto numa absolutamente deslocada e anacrónica peça teatral, com péssimos actores, que se esqueciam sempre da punch line o que retirava toda e qualquer hipótese do mínimo sorriso. Aquela obrigatória cena era apenas suportável porque era representada pelas "nossas crianças". Quando, finalmente, o sacrifício chegava ao fim podia começar a festa a sério.
Havia um grupo de jovens que, aproveitando a recente revolução dos cravos, formaram um grupo de rock! As violas acústicas, os tambores e adufes transformavam-se em avançados e, senão eléctricos, pelo menos electrizantes instrumentos dos Beatles, Rolling Stones e Elvis Presley. Todos os ídolos passavam por cima daquele palco. Tanto os mais velhos como os mais novos repetiam os movimentos que no café da estrada nova viram na televisão. Era divertido. Eu, miúdo que lá não estava, dancei toda a noite.
Quando se cansaram, os mais velhos tomaram o palco. As músicas de resistência ocuparam o ar. Os hinos até há pouco proibidos eram cantados com enorme e profunda emoção. Apesar de ausente, vi na Ti Maria um olhar cerrado de quem não perdoa o filho que lhe levaram na guerra. O punho fechado em cima da mesa estava tenso. A vela e o copo de vinho iluminavam-lhe a cara do vermelho cólera que lhe varria o coração.
A noite foi andando, uns saiam cansados, outros porque o caminho ainda era longo. A pouco e pouco a sala foi ficando mais vazia. A cada um que saía era dado um longo "graças a Deus" ou "Feliz noite de Natal". No final, apenas uns quantos rapazes se foram aninhando perto da lareira e continuaram a contar as histórias de terror que desafiavam os mais corajosos a aguentar em directa.
Admito que, apesar de não estar lá, me agradava aquele calor, mas que fui caindo enrolado na manta de lã até adormecer sobre o braço. De manhã, acordei com a excitação que andava no ar. "Que prendas teremos?" Será que, finalmente, "irei ter a bicicleta?" Eram tempos duros. Uma bicicleta nunca seria uma bicicleta. Quanto muito, era um projecto, um plano, uma ideia que seria materializada depois de muitos pedidos, muitas moedas juntas e, certamente, com um desconto especial do Sr. Manuel Joaquim porque "és bom rapaz e depois me farás uns recados".
Estava fora de questão, uma bicicleta nunca seria prenda. Talvez um gorro novo ou, com muita sorte, uma bola para jogar futebol. Recolhemos apressadamente a nossas casas e, algum tempo depois, estávamos todos no cruzamento das estradas a mostrar as prendas. Quer dizer... "a" prenda. Havia um de nós que tinha um tio emigrado em França e que lhe tinha enviado uma caixa de peças que se montavam... Espectacular. Ficámos a rodeá-lo enquanto através das figuras coloridas das instruções, dávamos ordens de engenheiros que ele, com precisão, executava. Na primeira sequência montámos uma casa, depois uma figura que parecia um cão e, finalmente, uma mangedoura em que podíamos colocar umas pedrinhas. Depois deste enorme trabalho, fizemos as linhas e fomos jogar à bola. Ganharam os que não perderam, como sempre. O campo começava numa rua e no cruzamento fazia uma curva para poder continuar sem descer muito, o que aconteceria se continuasse na mesma estrada. As balizas eram umas pedras e a bola era... de catchú... O Paulo tinha ganho uma bola de verdadeiro catchú... Ainda hoje não sei o que isso é, mas naquele tempo, mesmo sem saber porquê, era determinante. Tinha uma câmara de ar e, por fora, era de pele cozida. Foi uma enorme animação.
No final da manhã, toda a aldeia se reuniu na Igreja onde o padre avisou para os perigos vermelhos e como os comunistas seriam impedidos de entrar no Reino de Deus. Na minha aldeia havia duas verdades. Aquela que estava dentro da igreja e a outra que, cá fora, grassava pelos campos e pelas vozes dos trabalhadores que metiam os grandes proprietários a andar, acabando com anos de exploração. Na verdade, a grande maioria dos latifundiários estavam desaparecidos e, portanto, nem havia problemas  de maior.
O Natal estava a chegar ao fim. Eu sabia que aquela criançada, no dia seguinte, iria partir com os pais para pastorear os animais, amanhar a terra, transportar água ou qualquer outra tarefa que se impusesse. Era um Natal de curta duração, mas intensamente vivido. O Natal da minha aldeia, aquele em que eu nunca estive.


Foto: F Cardigos.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Histórias de banheira I

Desde que começou a exigir, e hoje a as crianças começam a exigir cedo, que o David me pede para lhe contar esta história no banho. Todos os dias, estas palavras são ditas exactamente da mesma forma e na mesma sequência. Tenho a certeza que se estiver na Horta e lhe der banho, o David me irá pedir para lhe contar esta história.


E segue assim: Era uma vez...



... um urso e um porquinho que andavam a contar cogumelos e flores. Contaram, um, dois, três cogumelos e uma flor.


O tigre também andava a contar cogumelos e flores, mas apenas encontrava flores. Contou, uma, duas, três flores.


A certo momento, o urso ficou cansado e foi aconchegar-se no rato.


Mas o tigre continuava muito excitado e foi brincar com a sua bola.


Até que o burro lhe tirou a bola para a utilizar como almofada.


Nisto, já o urso e porquinho estavam mesmo a dormir.


Acabou.

Foto: F Cardigos.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Gaspar

Gaspar era um ladrão. Nada a fazer e quase tentado estaria a dizer que nada de mal tinha, mas não é verdade. Retirar de alguém, é errado. Apesar disso, Gaspar era um ladrão com piada. Por exemplo, Gaspar recusava-se a roubar pobres, nunca roubava o que não necessitasse e fazia questão de retirar apenas aquilo que tinha a certeza que os donos não iriam necessitar... Ou pelo menos, não iriam necessitar muito...

Gaspar tinha uma enorme capacidade de falar em público. Era mesmo um sobre-dotado na arte da oratória, apesar de não ter tido uma grande escola, tirando a grande escola da vida, claro está. Quando se punha a dissertar, fosse um tema que conhecesse e dominasse ou não, atraía a embasbacada audiência para o ouvir a recitar um verso, a declamar prosa ou a discursar sobre as guerras do mundo. O fado falado parecia ter sido feito para ele, tal a sua capacidade de memorizar textos e articular as belas e redondas palavras de Camões. Por outras palavras, era um tagarela de primeira apanha...

À noite, antes de decidir qual o golpe que daria, passava na Taberna da Tia Judite Juliana e ficava horas a saborear e a dar a saborear os vocábulos de que se lembrava. Foi numa dessas noites que os olhos de Gaspar se cruzaram com os de Maria. Ela não deu a Gaspar mais atenção do que estava a dar à Tia Judite, enquanto servia um generoso e bem cheiroso copo de vinho, mas quando Gaspar terminou de dizer a primeira sílaba, já ela lhe tinha caído nos braços, mesmo sem se ter mexido.

Nessa noite não houve golpe. Dedicou-se por inteiro àquela que ele já sabia que viria a ser sua mulher. Nessa noite Maria percebeu que o seu coração tinha acabado de ser roubado para todo o sempre e ainda mais além. Gaspar muniu-se dos seus melhores poemas, ou melhor, dos melhores poemas que conhecia, visto que não considerava que os seus improvisos estivessem à altura de Maria.

Amor é fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer;

e continuou e continuaram...

Não ocorreu a Gaspar perguntar a Maria, para si a mais bonita e delicada de todas as mulheres, o que estaria ali a fazer. Também não ocorreu a Maria questionar qual a actividade de Gaspar. Ambos ouviram o que foi dito e respeitaram o que não foi.

Se defeito tinha Gaspar era falar demais... Nos dias seguintes, contou-lhe tudo, incluindo, gabando-se, como ganhava a vida. Já Maria, percebeu o erro e a inevitabilidade do que se seguiria. Maria, senhora dos seus segredos, por mais que gostasse de Gaspar, não lhe podia  contar tudo. Gaspar apenas sabia que Maria tinha de se ausentar periodicamente. No entanto, o fulgor, a energia, o carinho e a saudade que trazia de volta das saídas em trabalho eram demasiado reais para que restasse espaço para dúvidas ou ciúmes.

Depois de conhecer Maria, Gaspar considerou que tinha de dar um golpe maior porque queria que a sua rainha utilizasse aquele magnífico colar que tinha visto na Joalharia do Ouro Reluzente. Como não se sabia conter, contou a Maria os detalhes daquele golpe que, segundo ele, ficaria na história dos bairros tradicionais de Lisboa. Simularia uma avaria no sistema eléctrico e, quando fosse chamado o reparador, estaria ele do outro lado da linha. Depois, já com a desculpa para entrar na Joalharia do Ouro Reluzente e mexer no sistema eléctrico, colocaria um dispositivo que não apenas desligaria o alarme como abriria as portas à hora determinada da madrugada.

Não fosse estar a quebrar uma das suas regras básicas, estava de facto a roubar mais do que necessitava, e Gaspar sentir-se-ia realmente bem. O golpe era genial, resultava de um estudo profundo de electrónica e tinha um toque de classe muito acima da média. Ficaria nos Anais da criminologia alfacinha. Ou não...

Maria, por seu lado, insistiu para que ele não o fizesse. Ela não queria um colar e muito menos roubado. Disse-lhe vezes sem conta que não... mas Gaspar estava cego pelo génio daquele passo. Mesmo que Maria não o quisesse de facto, o que ele duvidava tal a beleza das pedras brilhantes que estavam ligadas pelo fio banhado a platina, poderia sempre vendê-lo ou trocar pela enorme viagem de Lua de Mel que ainda lhe estava a dever. Excelente, pensou, e fez.

Gaspar deu o golpe. No momento em que estava a entrar na Joalharia do Ouro Reluzente, apareceram dois polícias que, calmamente e com gentileza, o algemaram e levaram para a prisão. Apanhado em flagrante, apenas restou a Gaspar confessar como tudo fizera para que a pena não fosse tão pesada. Nada feito, o juiz, conhecendo a fama de Gaspar, deu-lhe uma pena exemplar.

Gaspar pensou-se perdido e, pior, pensou ter perdido Maria. Nada mais errado. Maria revelou-se uma ainda mais dedicada esposa. Todos os dias, ela o visitava na prisão, levando-lhe livros, comida e, acima de tudo, todo o amor que lhe tinha. Maria continuou durante toda a pena de Gaspar a visitá-lo. Gaspar, em troca, prometeu-lhe deixar o crime e aproveitou os tempos de cárcere para se formar em Literaturas Clássicas de Língua Portuguesa. No final, tal o brilhantismo da sua formatura, como não poderia deixar de ser, foi convidado para leccionar na mais prestigiada das Universidades.

Tudo isso, não sabia Gaspar, tinha de agradecer a Maria, mulher de Gaspar e a agente mais secreta e honesta dos serviços de espionagem da polícia camuflada.


Foto: F Cardigos.

Notas
- "Fado falado" no YouTube.
- Versão completa do soneto "Amor é fogo que arde sem se ver" de Luís Vaz de Camões pode ser lido aqui.

domingo, 26 de dezembro de 2010

O negócio

"Três!", disse o homem com cabeça de cão.
"Duas e nem mais uma décima", afirmou o homem com orelhas de gato.
"Isso nem vale um gato pintado", disse o homem com cauda de rato, temendo ter ofendido o homem com orelhas de gato. Era frequente o homem com cauda de rato dizer coisas inoportunas.
O negócio continuou com o homem com cabeça de cão a enaltecer as características da sua mercadoria. "Este é um magnífico instrumento que tem múltiplas funcionalidades e esculpido com recurso a uma ancestral arte de carpintaria fenícia", disse sem saber muito bem o que era a Fenícia. No entanto, se ele não sabia, muito menos saberia o homem com orelhas de gato...
Nem tinha acabado de pensar, já estava o homem com cauda de rato a dizer "O que é a Fenícia?".
"Isso não interessa, é complicado, não ias entender, é muito bom!" disse apressadamente o homem com cabeça de cão atropelando as palavras.
O homem com orelhas de gato, compreendeu que a mercadoria tinha acabado de perder valor e disse, "Uma".
"UMA?!" gritou o homem com cabeça de cão, "mas já tinhas oferecido duas, não podes baixar, isso não é regatear honestamente."
O homem com orelhas de gato, sorriu de lado, como apenas os gatenses sabem saber, e respondeu "mas tu mentiste e, por isso, acho que afinal vale ainda menos do que tinha pensado." Na realidade, o homem com orelhas de gato entendeu foi que o homem com cabeça de cão estava desesperado por vender o instrumento e que podia reduzir o preço.
O homem com cabeça de cão estava realmente desesperado... Como poderia regressar a casa sem dinheiro para o combóio? Estava nas mãos do homem com orelhas de gato. Ou talvez não... "Ó homem com com cauda de rato, quanto dás tu pelo instrumento?".
Por esta não esperava o homem com orelhas de gato. Apressou-se a protestar "o negócio é comigo! Não podes agora vender a outro."
"Posso, posso" disse o homem com cabeça de cão. "Baixaste o preço e eu acho que isto vale três, mesmo que os fenícios não lhe tenham tocado."
O homem com cauda de rato ficou surpreendido. Até tinha três no bolso e estava lisongeado por, pela primeira vez, o terem considerado. Não era normal ter peças ouro, mas o trabalhinho daquela manhã tinha corrido bem e, por isso, podia pagar.
O homem com orelhas de gato disse logo, "prontos, dou duas e meia".
Até poderia ter aceite, mas o homem com cabeça de cão estava disposto a dar uma lição ao homem com orelhas de gato. Esperou, olhou para o homem com cauda de rato e disse "Então?"
"Três!", disse o homem com cauda de rato. Nem tinha acabado de concluir aquela curta palavra e já o homem com cabeça de cão dizia "vendido!"

Foto: F Cardigos.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Rima de passeio

Vamos passear, vamos arejar,
vamos animar, assim a cantar.

Vamos a correr, vamos com prazer,
o vento a esgalhar, na cara irá parar!

Vamos de carro, vamos a pé,
Vamos de burrico, até ao café.

Como estás cansado, com as pernas a doer,
vamos de automóvel, até escurecer.


Põe o cinto de segurança, para termos confiança,
De sair a abrir e voltar calmamente a sorrir!

Foto: F Cardigos.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Nicolau de Lacrau Ruminhau

A primeira que vez que falei ao meu filho mais novo no Nicolau de Lacrau Ruminhau ele riu-se e disse "Ruminhau...". Estava aprovado. Nasceu Nicolau de Lacrau Ruminhau.
Evidentemente, está-se a ver, tinha de ser, Nicolau de Lacrau Ruminhau descendia de uma extensa linhagem de Lacraus e Ruminhaus, todos cheios de louvores, títulos e regalias obtidos por enormes favores feitos ao Rei e, mais tarde, ao Estado. Nicolau de Lacrau Ruminhau tinha então um longo manto de medalhas que, modestamente, resumia a Nicolau de Lacrau Ruminhau. Sim, ele era de nome completo Sua Excelência Reverendíssima Altíssima e Sereníssima Dom Nicolau Maria de Lacrau Oliveira e Sousa Ruminhau, Duque de Novarroque, Marquês de Angelísse e Conde de Xicarrite. Era também Barão de um sítio qualquer cujo o nome, na sua enorme velhice, não se lembrava.
Esse era o grande problema. Nicolau de Lacrau Ruminhau... estava velho. A idade tinha passado e Nicolau de Lacrau Ruminhau não se tinha dado conta. Nas inúmeras aventuras que tinha sido a sua vida tinha-se esquecido que, um dia, iria envelhecer. Agora que lá tinha chegado, não sabia muito bem o que fazer. Tinha imensas terras, palácios, amigos, familiares, criados e tudo o que se poderia desejar. Bastava um clique dos dedos e, imediatamente, o seu desejo se tornava numa duradoura e dourada realidade. No entanto, o que fazer...? Havia um enorme tédio que o invadia lentamente. Tinha pensado em escrever as suas memórias, mas isso apenas lhe deixaria saudades. Tinha pensado em viver novas aventuras, mas, na sua velhice, isso apenas o deixaria frustrado por já não poder saltar de árvore em árvore agarrado a uma liana... Havia coisas que a idade simplesmente não permitia.
Nicolau de Lacrau Ruminhau na mais alta torre do seu altíssimo palácio pensava... pensou... tornou a pensar ainda mais no que poderia fazer com a sua provecta idade e pensou novamente. Pensou ainda mais. A sua cabeça doía de tanto pensar durante dez longos anos. Pensou, pensava, remoeu os pensamentos. Tudo tinha, tudo podia e nenhuma ideia lhe aflorava no pensamento.
Nisto, olhando da mais alta torre do mais elevado palácio, reparou numa aldeia de onde se projectava uma enorme coluna de fumo. Chamou de imediato os seus mais letrados conselheiros. "Que fumo era aquele? Que fogueira estava por baixo daquele fumo?".
Partiram precipitadamente cavaleiros e cavalheiros procurando os caminhos certos para a aldeia de Cansite. Quando lá chegaram viram um enorme baile com centenas de pessoas cantando e dançando ao som de uma enorme sanfona. Reportaram a Nicolau de Lacrau Ruminhau. Este, de imediato, ordenou que os seus criados fizessem uma cópia desta festa no sopé da sua torre. Ele queria ver de perto aquilo que nem de luneta conseguia vislumbrar.
Nada feito. Por mais que tentassem imitar, os cavaleiros e cavalheiros nunca conseguiram afirmar que era igual à genuína festa da aldeia de Cansite. A sanfona era igualmente majestosa, os moços e moçoilas contratados estavam empenhados e sabiam a música e os passos da dança, mas não era a mesma coisa. Os cavaleiros e cavalheiros não estavam contentes. Replicaram a aldeia, casa por casa e até as achas da fogueira trouxeram ainda em brasa. Mas ainda não estava certo. Algo não funcionava...
Nicolau de Lacrau Ruminhau desesperava. Depois de tanto fazer na vida, quando só procurava um destino para a velhice, eis que tropeçava numa dificuldade... Tinha de ver a festa da aldeia de Cansite.
Do alto da mais alta torre do maior palácio do antigo Reino de Novarroque, de onde dirigia todos os detalhes do seu extenso negócio, chamou os mais sábios de todos os sabedores sapientes. "Como fazer?" Os mágicos, sábios, sabedores e outros filósofos sapientes pensaram e profetizaram. "Vossa Excelência Reverendíssima Entendidíssima e Compenatradissima terá de ir a Cansite. "Sair da minha torre, mais alta e majestosa? Descer? Ser novamente pequeno e visível?!" Era a única solução. Com tão peremptório discurso, após madura análise e apresentação de resultados, Nicolau de Lacrau Ruminhou preparou os seus vinte cavalos de puro sangue, o seu coche bordejado de ouro, safiras e diamantes e ordenou. "Vamos para Cansite!" Nisto, o mais sabedor dos sábios sapientes disse-lhe "Vossa Excelência Reverendíssima não irá ver a festa." "Não!?" afirmou o aristocrata dos aristocratas, "Isso é o que se vai ver! Ordenarei que festejem, à volta da mais quente fogueira e ao som da maior sanfona." E partiu.
Quando chegou a Cansite, depois dos vinte cavalos terem assustado toda a aldeia, encontrou um pátio deserto. Percebeu que a sua arrogância o tinha traído, como seria de esperar. Chamou o mais sábio dos sapientes e perguntou-lhe o que faltava. Estava disposto a dar-lhes tudo e eles tinham fugido...
Então o mais sábios dos sapientes explicou-lhe que, "quando quiserdes, Vossa Excelência Reverendíssima e Quadradíssima, realmente ver esta festa, tereis de trabalhar durante um ano de sol a sol, suar todos os dias para trazer para casa o pão suficiente para alimentar os de quem gostais e ainda deixar sobrar o necessário para pagar os impostos. Tereis de fazer isso todos os dias do ano sem nunca parar. Quando chegar ao final do ano, quando estiver bem frio, se sobreviveres, se toda a vossa família e amigos sobreviverem, aí sim, poderás trazer uma acha para a fogueira e bailar com o verdadeiro prazer de um agricultor de Cansite."
"Mas que injustiça essa de trabalhar de Sol a Sol, suar todos os dias... Estas terras são férteis, são boas e são minhas. Não é necessário nada disso. Novarroque é um Estado rico, porque trabalham como escravos esses habitantes de Cansite?" afirmou o mais rico dos ricos fidalgos de Novarroque. "Que eu saiba não houve qualquer tempestade, tremor de terra, vulcão, praga ou doença."
"O culpado, quereis mesmo saber?" questionou o sábio dos sábios, o mais sapiente de todos os sabedores.
"Ordeno-te que, se sabes, me digas já!" disse com a mais arrogante das arrogâncias o filho das mais abastadas linhagens.
"O culpado é o dono dos palácios com as mais altas torres, dos vinte cavalos de puro sangue e o proprietário dessas terras que se estendem até onde a vista alcança!" disse o sábio dos sábios com uma voz cheia de coragem, mas tremendo e temendo com o que se passaria a seguir. Mesmo assim, continuou "cada gota de suor que escorreu pelas suas faces alimentou os vossos cães durante um dia, cada gota de sangue, dos que se cortaram a podar quando já nem luz havia, serviu para fazer o vinho que ireis beber hoje ao jantar. Por cada grão de trigo que chegou à mesa daquela criança, houve uma eira que encheu os vossos cofres. Vós sois o culpado!"
Nicolau de Lacrau Ruminhau, herdeiro de tão nobres linhagens, educado pelos mais ilustres letrados de caracteres limados a fio de prata, sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. Não era possível. Ele o perfeito entre os iluminados não podia ser responsável por tamanha injustiça. Logo ali, deu ordem para desmontarem dezanove dos cavalos e darem um a cada família de Cansite. E, com o último, montou e procurou cada aldeia de Novarroque, passando dias a distribuir a riqueza que tinha inutilmente acumulado durante tantos anos. Deu um pouco de tudo a todos aqueles que tinham sido tão tristemente explorados.
Uma nova vida começou em Novarroque a partir desse dia. O mais sábio dos sábios coordenava os trabalhos nas terras de Nicolau de Lacrau Ruminhau e Nicolau de Lacrau Ruminhau ajudava a construir escolas, hospitais, hospícios e catedrais, iniciando assim um ciclo de felicidade em Novarroque.
O Presidente de Novarroque, ao saber de tão grande revolução nas terras de Nicolau de Lacrau Ruminhau, mandou chamar o mais digno dos finos e gentis aristocratas. Ao saber da história, que coroava uma vida de serviço ao Estado, resolveu nomear o velho Nicolau de Lacrau Ruminhau como Ministro de Bem Fazer para toda a Novarroque.
E assim terminaram com enorme azáfama os dias de Nicolau de Lacrau Ruminhau, inesperado Ministro de Bem Fazer, nomeado por um baile no pátio central de Cansite.

Foto: F Cardigos.